“Xangô é rei, é rei Nagô
Xangô é rei, da cidade Oyó.”
Domínio público.
O nome Xangô normalmente vinculado a religião brasileira do
candomblé é caracterizado como uma figura ambígua e difusa que
permeia o meio religioso e político no reino de Oyó. Ora Xangô é
apresentado como rei, ora como orixá do panteão iorubá. De modo que a existência desta personalidade acaba apontando indícios sobre a
organização social desta região.
Não existem documentos históricos que provem sua real
existência, pois tratamos aqui de uma sociedade pertencente à tradição oral, onde a principal fonte de pesquisa são os relatos orais que atravessaram séculos por meio principalmente da religião. No entanto isto não desvaloriza a presente questão da materialidade histórica de Xangô, pois nada garante que a prova escrita que Xangô existiu seja de fato a mais confiável.
“Nada prova a priori que a escrita resulta em um
relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral
transmitido de geração a geração” (Hampatê-Ba: 2010: p222).
De modo que o presente trabalho consiste em uma apresentação de uma
pesquisa que tem como eixo a dúvida em relação à consistência
material de Xangô e como isso mostra de algum modo a organização social e
político-religiosa de Oyó. No entanto se pensarmos seguindo o
conceito de tradição oral, onde a ordem material e espiritual
(religiosa) possuem total ligação, talvez se poderia afirmar de
antemão sua existência.
“Dentro
da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão
dissociados” (Hampatê-Ba: 2010: p222).
Reino de Oyó:
Localizada no delta do rio Níger na África Ocidental, o Oyó,
segundo Alagoa (2010), se originou assim como todos os outros reinos
iorubas através das tradições de Ilê-Ifé:
“Primeiramente surgiu o
problema da concordância entre as tradições orais e os dados
arqueológicos sobre as origens dessas comunidades (iorubas). Tal
problema remete principalmente às tradições que fizeram de Ilê-Ifé
o centro da formação e a origem de todos os reinos iorubas, o lugar
onde os chefes recebiam a coroa ornada de pérolas.” (Alagoa: 2010:
p 527).
Ilê-Ifé seria uma espécie de irradiador primordial dos
reinos iorubás. Segunda a tradição conta-se que foi fundada
por Odudua que teria vindo do Orun (céu) para constitui tal reino. E partir daí
originou-se todos os reinos iorubás.
A origem da região se vincula totalmente a origem mítica, onde
a aquisição de datas só é possível a partir de aproximações.
Segundo alguns linguistas, acredita-se que o início do povoamento da
região tenha ocorrido por volta do ano 1000 e que teriam vindo de
dois possíveis caminhos.
“(...) um em direção a Ekiti, a Ifé e a Ijebu,
na floresta, a outra, em direção a Oyó, na periferia da floresta.”
(Lody: 2010: p30). O que ao considerar a genealogia dos “Alafin
Oió” (Barros), a fundação da cidade teria sido entre 1000 a 1300
d.C
De acordo Kizerbo (1972) e Lody (2010), a princípio os reinos
que ali se formaram teriam sido de base autônoma, cada qual com seu
governante. Em Oyó o governante era o Alafim, ou o oba, de forma que
seu primeiro Alafim foi Oranian, filho ou neto de Odudua.
O reino de Oyó teria se caracterizado por ter caráter
expansionista e foi a partir deste fator que a cultura iorubá foi bastante
difundida. “Oyó tornou-se porta estandarte do poder ioruba nas
setentrionais e ocidentais da região.” (Alagoa: 2010: p527).
Devido seu forte poderio armamentista, houve um aumento de sua
importância política na região, seu exército possuía cavalos o
que se dava como um diferencial na guerra com outros povos. “E os
oiós eram, sobretudo isto: soldados a cavalo”. (Silva: 2004: p50).
O culto à Xangô passa a ser uma indicação da natureza
expansionista do reino, pois seu culto foi adotado por diversas
cidades, o que normalmente não ocorria, pois cada qual tinha o seu
orixá escolhido.
“Em seu auge, o império
de Oió englobava as mais importantes cidades do mundo iorubá, tendo
culto a Xangô, que era o Orixá do rei ou obá de Oió, portanto o
orixá do império, teria sido difundido por todo o território iorubano, o
que não era muito comum, pois cada cidade ou região tinha seus
próprios orixás tutelares e poucos eram os que recebiam culto nas
mais diversas cidades, como Exu, Ossaim e Orunmilá.” (Prandi e
Vallado: 2010: p145)
As relações políticas do reino ligavam-se diretamente ao
seu caráter guerreiro. Sua dominação aos demais reinos da região
vinculavam-se a uma espécie de relação de vassalagem, onde a
dominação teria, sobretudo, a ver com o pagamento de impostos. De
forma que quanto maior sua distancia, maior também era autonomia da
cidade vassala. Uma das figuras que se destaca nessas relações é o
arrecadador de impostos ou babalaô.
Segundo Maestri (1988) e Barros (2009), Oyó atinge seu apogeu no
século XV, onde houve uma reorganização de seu exército após a
expulsão dos chefes do reino, ou seja, houve uma reconquista do
território e o exército. Após sua reorganização acaba por se
lançar em uma nova política militarista e expansionista (Alagoa:
2010). Já no século XVII com o advento do comércio de escravos
juntamente com o Daomé, cidade ligada a Oyó em uma espécie de
vassalagem, passa a se especializar na captura de cativos para o
comércio. “Estes aumentaram ainda mais, na segunda metade do
século XVII, com a expansão para sudeste do chamado império de Oió
e com o derramar para o sul de seu vassalo, o reino do Daomé”.
(Silva: 2004: p42). Sua ligação com o Daomé se estabelece
principalmente pela manutenção do comércio de escravos, a
contribuição de Oyó para o comércio atlântico, parece se dar com
determinadas alianças estabelecidas principalmente com esse reino. De maneira que o período de decadência do reino de Oyó coincide com
o período de maior fluxo de escravos desta região para as Américas
principalmente para o Brasil.
“A
contribuição de Oió e de Daomé para o comércio atlântico de
escravos atingiu o seu apogeu por volta de 1680 e 1730, quando cerca
de vinte mil escravos eram vendidos anualmente” (Rolland, 1994:145,
apud Barros: 2009: p46).
A decadência total do reino de Oyó se dá de maneira mais enfática
com a chegada dos ingleses, o Oyó nesta época até
o século XIX não era zona de influência europeia efetiva até o
referido século, o que de maneira drástica muda a partir da ocupação inglesa
em 1900 (Lody: 2010) que se estabelece na região até 1960.
A figura dúbia político-religiosa de Xangô:
Segundo consta Xangô teria sido o terceiro ou quarto alafin do reino
de Oyó, descendente direto de Oranian, seu fundador.
“Com a morte de Oraniã,
seu filho Ajacá foi considerado coroado o terceiro Alafim de Oió.
Ajacá, que tinha o apelido de Dadá, Por ter nascido com o cabelo
comprido e encaracolado, era homem pacato e sensível, com pouca
habilidade para a guerra e nenhum tino para governar. Dadá-Ajacá
tinha um irmão que fora criado na terra dos nupes, também chamados
tapas, um povo vizinho dos iorubás. Era filho de Oraniã com a
princesa Iamassê, embora haja quem diga que a mãe dele foi Torossi
filha de Elempê, o rei dos nupes. Esse filho de Oraniã tinha o nome
de Xangô, e era grande guerreiro que governava Cossô, pequena
cidade localizada nas cercanias da capital Oió. Xangô um dia
destronou o irmão Ajacá-Dadá, e o exilou como rei de uma pequena e
distante cidade, onde usava uma coroa de búzios, chamada coroa de
Baiani”. (Prandi:2010: p 143).
Para Pierre Verger (1999) a existência deste rei é inegável, o
problema se instala quanto à fonte utilizada que seriam os relatos
orais.
É importante salientar que a origem de Xangô não se divide
totalmente entre uma mítica e outra histórica, muitas vezes
aparecem de modo entrelaçado, não se tornando muito claro uma
divisão entre estes dois âmbitos. Assim, por exemplo, Odudua seria
um orixá vindo do próprio Orun (céu) para criar Ilé-Ifé, mas
também avó de Oranian que teria fundado Oyó e que seria o próprio
orixá criador da terra e que por sua vez seria pai, avó ou bisavó
de Xangô orixá dos raios (Prandi: 2012).
A medida em que se segue a pesquisa, a importância
político-religiosa de Xangô é ressaltada, pois seu culto fora estabelecido em diversas cidades em que o
culto oficial era pertencente a outro orixá, demonstrando o grau de influência do reino de Oyó. A instauração do culto à Xangô acaba diferindo um pouco do conceito de ancestralidade
de orixás, onde se faz a culto quando se é descendente mesmo do orixá ou pertencente a cidade do Orixá.
“(...) um orixá é uma
pessoa que viveu na terra quando esta foi criada, em tempos
primordiais, e da qual descendem as pessoas de hoje. Quando os orixás
desapareceram, seus filhos começaram a oferecer-lhes sacrifícios e
a dar sequência a todas as cerimônias que eles mesmos realizaram
quando encontrava, na Terra. Esse culto passou de geração a outra,
e hoje um indivíduo considera o orixá que ele adora, o ancestral do
qual descende.” (Verger :1971: p12).
O caráter religioso
de Xangô e de todos os Alafins que são seus descendentes parece
sustentar as relações políticas de Oyó na região. No entanto no presente atual, a necessidade se faz em provar a
real existência histórica do Alafim, divergindo com a real necessidade de
outrora, que era provar seu caráter religioso. Contudo a figura mantém–se em seu estado de ambiguidade,
onde não é possível afirmar se Xangô de fato existiu como somente rei de
Oyó ou se era somente um orixá com origem unicamente mítica.
Para compor a ideia de uma materialidade real de Xangô, o que
parece ser necessário nos dias atuais, foi feita pelo Institut
Français d’Afrique Noire (Dacar), uma tabela sobre “os 37
primeiros Alafins de Oyó (período entre a fundação até1850)”, Sendo Xangõ o quarto Alafim:
Odudua
|
9.
Onigbogi
|
17.
Odaraw
|
25.
Onisile
|
33.
Maku
|
Oraniã
|
10.
Ofiran
|
18.
Kara
|
26.
Labisi
|
34.
Majotu
|
Ajaka
( 1ªvez)
|
11.
Egunoja
|
19.
Jayan
|
27.
Awonbioju
|
35.
Amodo
|
Xangô
|
12.
Orompoto
|
20.
Aybi
|
28.
Agbiodun
|
36.
Oluew
|
Ajaka
(2ªvez)
|
13.
Ajoboyede
|
21.
Osiyniago
|
29.
Majeogbe
|
37.
Atiba
|
Aganju
|
14.
Abipa
|
22.
Ojigi
|
30.
Abiodum
|
|
Kori
|
15.
Obalokun
|
23.
Gberu
|
31.
Aolé
|
|
Oluaxo
|
16.Ajagbo
|
24.
Muniwaiye
|
32.
Adébo
|
|
Fonte: Raul Loby, in: Xangô,
o senhor da casa de fogo,
Ed: Pallas, Rio de Janeiro, 2010.p38.
A tentativa de comprovação de que Xangô existiu no âmbito
histórico se vincula a uma tentativa de valorização da cultura iorubá, se tratando de uma perpectiva
eurocêntrica que tenta o tempo inteiro encaixar em seus moldes uma cultura que
sempre foi considerada aquém, de maneira que a abordagem da presente questão
não se dá de forma efetiva pela abordagem histórica, valor efetivamente
ocidental/europeu, mas sim pelo viés com maior vínculo a tradição oral. De modo que a existência somente histórica ou somente religiosa é irrelevante, pois os dois âmbitos se mesclam e constituiem unidade do Alafim/orixá.
Considerações Finais:
Considera-se que não é possível afirmar totalmente que a figura
de Xangô seja por inteiro somente pertencente ao âmbito histórico ou somente pertencente ao âmbito religioso, o que cabe afirmar é
que o culto a sua figura se encontrava difundida na região onde
havia maior domínio do reino de Oyó. Contudo ainda cabe salientar
sua importante existência nas religiões afro-brasileiras que tenham
como origem o culto iorubá aos orixás.
“A memória construída
do poder real do Alafim, em especial o de Xangô, é revivida e
ampliada em um espaço nacional brasileiro. Nos candomblés baianos
ele é quase sempre o patrono das roças, ou a ele são consagrados
monumentos especiais, como o que aparece no barracão do terreiro Axé
Ilé Nassô – Casa Branca. Aí, o ixé – mastro ou coluna
central, espécie de umbigo da casa – é encimado por coroa
monumental em madeira, onde se veem alguns oxês de Xangô e damatás
de Oxóssi, além de outros símbolos referentes aos orixás da nação
ketu”. (Lody:2010:p 41).
Logo a figura de Xangô é de extrema importância tanto para as
religiões afro-brasileiras, quanto para a pesquisa sobre a região
do delta do rio Níger. Posto que o orixá/alafim carrega
resquícios de memória da tradição que outrora se estabelecia na
região, pois como não há a possibilidade de encontrarmos registros
escritos sobre a origem de Oyó até determinado período devido à
própria lógica das sociedades orais, cabe entender a lógica destas
sociedades a partir dos elementos que descendem da mesma, os mitos dos orixás.
BIBLIOGRAFIA:
ALAGOA, E. J. “Do Delta do Níger aos Camarões: os Fon e os
Ioruba”. In: História Geral da África, vol. V, África do
Século XVI ao XVIII. Editor: Bethwell Allan Ogot. UNESCO.
Brasília. 2010, pp519-540.
BARROS, José Flávio Pessoa. “Complexo Cultural Nagô-Jejê” e
“Mito, História e Memória”. In: A Fogueira de Xangô, o
Orixá do Fogo. Ed Pallas. Rio de Janeiro. 2009, pp25-52.
HAMPATÉ-BÂ, A. “A tradição viva”. In História Geral da
África vol. I. Metodologaia e Pré História da África. Editor
Joseph KI-Zerbo, pp167-212.
LODY, Raul. Xangô, o senhor da casa do Fogo. Ed Pallas, Rio
de Janeiro, 2010.
PRANDI, Reginaldo e VALLADO, Armando. “Xangô, Rei de Oió”. In:
Dos Yorùbá ao Candomblé Kétu, Origens, Tradições e
Continuidade. Ed EDUSP. São Paulo. 2010, pp141-159.
PRANDI, Reginaldo. “Xangô”, “Odudua” e “Oraniã”. In:
Mitologia dos Orixás. Companhia das Letras. São Paulo. 2012,
pp242-290 e pp422-439.
SILVA, Alberto da Costa e – Francisco Félix de Souza, mercador de
escravos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: Ed UERJ, 2004.
VERGER, Pierre. “Noção de Pessoa e Linhagem Familiar entre os
Iorubás”. In: Comunicação apresentada no Colóquio Internacional
La Notion de Personne em Afrique Noire. Paris. 1971. Pp 01-14.
Disponível em:
http// culturayoruba.files.
wordpress.com/2012/nocaodelinhagemfamiliarentreosiorubas.pdf. Acesso
em: 04/12/2013.